Estudo mostra como nosso cérebro retoma experiências recentes durante o sono

Estudo fez experimentos que mostram como nosso cérebro usa o sono ou períodos de descanso para ajudar a consolidar o aprendizado.
“Sleeping Girl” óleo sob tela, feito aproximadamente em 1620. Ilustração por Domenico Fetti
“Sleeping Girl” óleo sob tela, feito aproximadamente em 1620. Ilustração por Domenico Fetti

Enquanto dormimos, nosso cérebro está ocupado organizando novas memórias em armazenamento de longo prazo — ou pelo menos é o que diz a teoria sobre o assunto. Novas pesquisas intrigantes reforçam essa afirmação, com evidências de que nosso cérebros reproduzem as experiências do dia durante o sono, no que é parte integrante do processo de armazenamento de memória.

Em nosso cérebros, a conversão de memórias de curto prazo em memórias de longo prazo acontece enquanto dormimos, inclusive durante pequenos cochilos. Os neurocientistas se referem a esse processo como “consolidação da memória” e tem sido objeto de muitos estudos, tanto em humanos quanto em animais, há décadas.

Há muitas partes móveis nesse processo hipotético, mas as duas principais áreas cerebrais envolvidas são o hipocampo e o neocórtex. O hipocampo é responsável pelo aprendizado e pela memória, e é uma parte superplástica do cérebro, pois suas forças sinápticas podem mudar rapidamente. O neocórtex, por outro lado, é muito menos flexível, tornando-o um local confiável para armazenar memórias de longo prazo.

De forma simplificada, a consolidação da memória é um processo no qual o hipocampo entrega memórias recém-formadas ao neocórtex de aprendizado mais lento, que é menos suscetível à perda de informações, por assim dizer.

“Isso é feito ao fortalecer rapidamente as conexões nos caminhos através do hipocampo que interconectam essas áreas neocortais”, disse Beata Jarosiewicz, pesquisadora sênior do NeuroPace e coautora do novo estudo, ao Gizmodo. “Mais tarde, o hipocampo pode então reativar os neurônios neocorticais envolvidos no processamento de todos os componentes desses eventos originais […] e sua reativação é experimentada como uma memória”.

Durante o sono ou o repouso, acredita-se que a ativação repetida ou “reprodução offline” de experiências recentes consolide essas memórias. Em outras palavras, “para fortalecê-los e incoporá-los gradualmente sinergicamente à nossa base de conhecimento existente no neocórtex, sem interromper as informações que já estão lá”, disse Jarosiewicz, que já havia trabalhado na iniciativa de pesquisa BrainGate.

O novo artigo, publicado nesta terça-feira (5) no Cell Reports, contribui para essa discussão apresentando evidências de repetição offline no cérebro humano durante o sono, em uma descoberta que reforça a hipótese de consolidação de memória padrão. Esse processo já foi documentado em animais não humanos, mas o novo estudo é o primeiro a mostrá-lo no cérebro humano.

“A repetição da memória foi amplamente descrita em animais não humanos”, disse Jarosiewicz, com neurocientistas capazes de rastrear a atividade cerebral até em neurônios individuais.

Nos seres humanos, evidências indiretas disso foram vistas usando ferramentas não invasivas, como EEGs (eletroencefalograma) e fMRIs (imagem por ressonância magnética funcional), disse ela, mas as “tecnologias de gravação nesses estudos não tinham resolução espacial para testar diretamente a reprodução no nível dos padrões de taxa de disparo neural, como fizemos aqui”.

Como o estudo foi feito

Para o novo estudo, dois participantes com quadriplegia tiveram microeletrodos intracorticais implantados em seu córtex motor, a parte do cérebro responsável pelo movimento. Isso foi feito como parte de um ensaio clínico piloto do BrainGate, no qual cursos de computador, membros protéticos robóticos e outros dispositivos auxiliares podem ser controlados pelos pensamentos de uma pessoa.

O BrainGate é uma iniciativa de pesquisa acadêmica envolvendo a Universidade Brown, o Hospital Geral de Massachussetts, a Universidade Case Western Reserve, Universidade Stanford e o Centro Médico Providence VA.

Estudo sugere que durante período de descanso serve para cérebro consolidar o que foi aprendido. Ilustração por J. Eichenlaub et al., 2020
Estudo sugere que durante período de descanso serve para cérebro consolidar o que foi aprendido. Ilustração por J. Eichenlaub et al., 2020

Ambos participantes foram convidados a jogar um game de memória parecido com Simon (no Brasil, esse jogo se chama Genius). Basicamente, o game envolve quatro painéis coloridos, que acendem as luzes em um padrão cada vez mais complexo e que os participantes devem memorizar em tempo real.

Mas, em vez de imitar esses padrões com os dedos, os participantes conseguiram fazê-lo com um cursos controlado pela mente, graças a um implante. Os participantes realizaram muitas repetições de uma sequência padrão. A sequência padrão foi intercalada com sequências externas, que serviram como controle e apareceram apenas duas vezes cada. Os pesquisadores monitoraram os padrões neurais dos dois participantes enquanto jogavam o jogo da memória.

Jogo de memória Genius, da Estrela; nos EUA é chamado Simon

Jogo de memória Genius, da Estrela; nos EUA é chamado Simon

Após uma sessão de jogo, os participantes foram convidados a tirar uma soneca ou simplesmente descansar. Esse padrão de sono e jogo foi repetido várias vezes, e os pesquisadores registraram atividade de pico em seus agrupamentos neuronais ao longo do experimento.

A análise dos dados mostrou que os padrões específicos de disparo neuronal vistos durante as sessões de jogo correspondiam aos padrões durante o sono e o repouso acordado. De certa forma, era como se os participantes estivessem inconscientemente jogando o game. Os padrões de atividade cerebral registrados durante o repouso foram mais próximos dos observados durante a execução da sequência de cores aprendida em comparação com as sequências de controle externas.

Os pesquisadores dizem que esta é a primeira evidência direta de repetição associada à aprendizagem no cérebro humano. Mas ainda resta muito trabalho, pois este estudo não apresenta evidências mostrando uma relação causal entre reprodução offline e consolidação de memória de longo prazo.

“Uma coisa que este estudo não abordou é o grau em que a força da reprodução se relaciona com a força da aprendizagem”, disse Jarosiewicz ao Gizmodo. “Estudos futuros poderiam sondar ainda mais essa relação, por exemplo, testando novamente os participantes nas sequências repetidas novamente após a soneca pós-jogo. Também gostaríamos de ver como a reprodução evolui por períodos mais longos e diferentes estágios do sono, incluindo o sono noturno, e talvez até explorar como a reprodução pode estar relacionada a fenômenos como o sonho”.

Curiosamente, a nova pesquisa tem implicações para estudantes ou qualquer outra pessoa que esteja se preparando para uma atividade relacionada à memória. Não é recomendável estudar loucamente antes de um exame, apresentação ou entrevista, se esta interpretação estiver correta. Em vez disso, durma bem e consolide essas memórias recém-adquiridas.

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