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Mano, Yuri e por que as “Quatro Linhas” não são um lugar sem lei

"O gramado dos estádios não é uma terra sem lei nem um refúgio onde assediadores, racistas e outros bichos podem fazer o que quiserem". Leia na coluna de Cassiano Gobbet
Imagem: Reprodução/Fotos Públicas

O ano é 1998. A Alemanha é a atual campeã europeia, vencedora do torneio oito anos antes. A Die Mannschaft enfrenta a Croácia nas quartas-de-final com um elenco liderado pelos remanescentes daquele título, como Lothar Matthäus e Jürgen Klinsmann. Não é um time ruim, mas tem a maior média de idade daquele mundial (30.1 anos) e é previsível. O técnico é Berti Vogts, ex-campeão do mundo, uma lenda do futebol alemão. Diante de uma Croácia mais jovem, técnica e compacta, Vogts vê seu time ajoelhar-se e seu sonho do título mundial derreter. Surtado, Vogts desanca seus jogadores, chamando o meio-campista Andreas Möller de “cego”, a plenos pulmões, referindo-se a outros chamando-os de “aleijado”, “burro”, e afins. O episódio chocou a sociedade alemã, Vogts caiu e houve quem – 26 anos atrás – pensasse em acioná-lo na justiça por assédio. No Brasil, os clichês e frases feitas do amador futebol brasileiro, por outro lado, parecem aceitar o episódio entre o técnico do Corinthians e um jogador como “natural”.

Para não descontextualizar, é verdade que alguns observadores chegaram a levantar a questão, e Mano Menezes se defendeu dizendo que o futebol é um lugar de “palavras fortes”. Pensemos o seguinte: se Mano fosse o chefe do atacante corintiano Yuri, e eles estivessem num escritório trabalhando, seria normal? E trocar tabefes dentro das “quatro linhas” (um patético jargão normalmente usado por ex-jogadores para diminuir as opiniões alheias) é aceitável?

Nossa civilização já foi pior. Até outro dia, chamar jogadores negros de “macacos”, nordestinos de “cabeça-chata”, assediar mulheres dentro de estádios e outras animalidades também eram vistas como situações das “Quatro Linhas”. Mas a melhora ainda é ínfima.

Jogadores, ex-jogadores e jornalistas que têm medo da torcida compram a tese das “Quatro Linhas” porque é conveniente. Qualquer outro não pode opinar porque não sabe nada, mas quem faz a lei não são eles, nem um árbitro de uma federação amadora. A lei vale – ou deveria valer – para todos os lugares e pessoas.

Na verdade, num caso como esse, dá para ir além. Quem nunca esteve nas “Quatro Linhas” aparentemente tem mais condições de dizer o óbvio. Infrações, contravenções ou crimes previstos na lei não excluem os gramados dos estádios. Juristas dizem que não foi tão grave? Pior para eles, porque eles estão do lado de gente que até bem pouco tempo atrás, vomitava racismo, homofobia, misoginia e violência e ainda se justificavam com pérolas como “Vira homem!”.

O que se aceita nas “Quatro Linhas” é nada mais do que um reflexo da sociedade. Os racistas já enfiaram o rabo entre as pernas porque agora, abrir o esgoto que é a boca deles, dá cadeia, assim como hostilizar grupos historicamente vitimizados pela miséria humana. Mano Menezes tem culpa no episódio, sim, mas ele é um sintoma, não uma causa. O impacto de ver um técnico experiente, à frente da segunda maior torcida do Brasil, assediar um atleta deveria ser imenso, mas foi mediano, na melhor das hipóteses. Isso ocorre porque o país ainda não evoluiu o bastante para fazer a lei valer em todo lugar. “Ah, mas isso que o Mano fez, todo mundo faz”. Está vendo como o problema é a sociedade e não o técnico do Corinthians?

Point Blank

Na década de 90, Edmundo saiu bravinho de um jogo do Vasco na Paraíba, e mandou a pérola:  “A gente vem na Paraíba, um paraíba apita… Só pode prejudicar a gente”.  O árbitro Dacildo Mourão, cearense, não processou o então atacante.

Em 1993, Corinthians e Cruzeiro se enfrentaram no Pacaembu e Maria Edilaine da Silva era a primeira auxiliar num jogo profissional. No primeiro lance controverso, os jogadores do Cruzeiro cercaram a auxiliar, que foi isolada pela polícia para não apanhar. O apoplético lateral cruzeirense Paulo Roberto xingava-a sem parar, e o meia Nonato chegou a dar um chute na auxiliar. Se você não conhece a pré-história, veja o vídeo.

Confesso que fiquei desapontado ao ver Casagrande minimizar o episódio e bater na tecla de quem nunca jogou futebol profissional não pode entender o que se passa em campo. Uma frase do ex-técnico italiano, Arrigo Sacchi, resume bem como o raciocínio é obtuso: “Eu não preciso ter sido um cavalo para ser um bom jóquei”.

Falo da decepção porque Casagrande foi um dos pouquíssimos comentaristas a criticar a Copa que aconteceria no Brasil, (mesmo com a diretriz Global de jamais questionar um torneio que foi pago com nosso dinheiro), foi o primeiro a criticar episódios nebulosos com Cuca, Robinho, Daniel Alves e afins, e teve a coragem de falar de sua batalha pessoal com a droga publicamente. É claramente um cara decente. Sempre o admirei, e continuo a admirar (mas discordo dele nesse caso).

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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