A última refeição de Ötzi, o Homem do Gelo pré-histórico, foi bastante energética
Desde a descoberta de seu corpo mumificado, há quase 30 anos, Ötzi, o Homem do Gelo, já forneceu aos cientistas diversas informações sobre os europeus da Idade do Cobre. Uma análise atualizada do conteúdo do seu estômago agora oferece um vislumbre da refeição final do Homem do Gelo, que foi notavelmente alta em gorduras.
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O corpo de 5.300 anos de Ötzi, o Homem do Gelo, foi acidentalmente descoberto em 1991 por alpinistas nos Alpes Orientais italianos. A partir de seus restos bem preservados, sabemos que Ötzi tinha cerca de 45 anos quando morreu e foi atingido por uma flecha nas costas em seus últimos momentos.
O corpo do caçador da Idade do Cobre estava coberto de tatuagens, e ele mostrava sinais de dor articular crônica, doença de Lyme, doença periodontal e úlceras. Ele também exibia diversas feridas não fatais, incluindo um corte profundo na mão direita que ele recebeu algumas horas antes de sua morte.
Ötzi também estava equipado com uma série de ferramentas, muitas das quais estavam muito desgastadas e com extrema necessidade de substituição. Mas, por alguma razão, o Homem de Gelo não tinha arco e nem material para flechas para acompanhar suas pontas de flecha — um possível sinal de que ele foi atacado pouco antes de sua morte.
Restos animais encontrados no estômago do Homem do Gelo. Imagem: Instituto de Estudos de Múmias/Eurac Research/Frank Maixner
Agora, graças a uma nova pesquisa publicada nesta quinta-feira (12) na Current Biology, estamos chegando mais perto de ter uma imagem completa de como foi a última refeição de Ötzi.
Anteriormente, cientistas haviam analisado amostras retiradas do trato gastrointestinal inferior do Homem do Gelo, porém, ao investigar os conteúdos de seu estômago, uma equipe de pesquisa liderada por Frank Maixner, do Instituto Eurac de Estudos da Múmia da Universidade de Bolzano, na Itália, teve uma oportunidade de estudar outras biomoléculas, como lipídios, que ainda estão preservadas no estômago de Ötzi, e não nos intestinos inferiores.
A nova pesquisa mostra que a última refeição de Ötzi continha uma alta proporção de gordura, consistindo de carne selvagem de ibex (cabra-das-rochosas) e veados, junto com cereais feitos de einkorn, um tipo de trigo. Os cientistas também detectaram traços da planta de samambaia venenosa, que Ötzi provavelmente consumiu como remédio para evitar parasitas intestinais.
Ao todo, era uma refeição notavelmente grande e energética — talvez deliberadamente. Uma proporção surpreendentemente alta de gordura foi encontrada no estômago do Homem do Gelo — cerca de 46% de seu conteúdo estomacal era composto por resíduos de gordura animal. Hoje em dia, uma dieta saudável não deve ter mais de 10% dessas gorduras.
“Ötzi parece ter conhecimento do fato de que as gorduras representam uma excelente fonte de energia”, diz Maixner ao Gizmodo. “A região alta dos Alpes, de cerca de 3.200 metros de altitude, onde viveu o Homem do Gelo e onde ele foi encontrado cerca de 5.300 anos depois de sua morte, apresenta um desafio definitivo para a fisiologia humana. Ela exige um suprimento ótimo de nutrientes para evitar uma queda súbita de energia. A última refeição de Ötzi foi uma mistura equilibrada de carboidratos, proteínas e lipídios — perfeitamente adequada às exigências da vida em uma região alta dos Alpes.”
Ötzi, portanto, provavelmente sabia de antemão que estava prestes a encarar uma jornada pelas montanhas, e foi por isso que ele comeu um suntuoso banquete cheio de comidas com alto teor de gordura antes de sua viagem final. Se ele sabia que estava prestes a ser atacado ou se o ataque foi uma emboscada, ainda é um mistério.
“O conteúdo do estômago do Homem do Gelo é apenas uma ‘captura instantânea’ e provavelmente não reflete sua dieta geral”, disse Albert Zink, coautor do novo estudo, ao Gizmodo. “No entanto, achamos que a dieta de Ötzi era geralmente bem equilibrada, incluindo caça, gordura, cereais e frutas.” Zink diz que o Homem do Gelo parecia estar preparado para ficar longe de “casa” por vários dias; além de ter tido uma grande refeição de alta energia, ele levava comida com ele, incluindo carne seca de ibex e veado.
“Pouco se sabe sobre o que as pessoas da Idade do Cobre comiam e como preparavam sua comida”, diz Zink. “Nosso estudo forneceu, pela primeira vez, detalhes sobre a composição de suas refeições e também sobre como a comida era preparada. Além disso, ele fornece primeiras informações sobre o uso de plantas medicinais para o tratamento de problemas de saúde.”
Para reconstruir a refeição final do Homem do Gelo, Maixner e seus colegas usaram uma abordagem interdisciplinar, “multiômica”, combinada com microscopia. Essa análise multifacetada envolveu uma equipe internacional de especialistas, que aplicaram metagenômica (o estudo do material genético), metabolômica (o estudo do processo químico envolvido no metabolismo), lipidômica (o estudo dos ácidos graxos), proteômica (o estudo das proteínas) e microscopia de alta resolução.
Ursula Wierer, arqueóloga da Soprintendenza Archeologia, em Florença, na Itália, que não esteve envolvida no novo estudo, diz que os autores “fizeram um trabalho muito bom”, apresentando uma “abordagem metodológica combinada de amplo espectro para estabelecer a composição exata da dieta do Homem do Gelo antes de sua morte”.
Wierer diz que o novo estudo traz novas informações importantes sobre os últimos dias de Ötzi. Além disso, ela achou os resultados surpreendentes.
“Acho interessante que a origem da carne seja representada por animais selvagens, especialmente o ibex, e não por animais domesticados, embora a criação de animais tenha sido uma atividade econômica dos contemporâneos do Homem do Gelo por vários séculos”, diz Wierer ao Gizmodo. “O ibex é uma espécie que vive acima da linha das árvores, o que teria exigido práticas de caça na zona de alta altitude por parte do Homem do Gelo e/ou sua comunidade.”
Ela diz que as quantidades abundantes de gordura de animal silvestre encontradas no estômago de Ötzi a lembram dos hábitos alimentares de caçadores-coletores modernos espalhados pelo mundo.
“Uma dieta baseada em carne de animais silvestres dificilmente traz calorias suficientes para abastecer uma pessoa com energia suficiente”, diz. “Portanto, entre as últimas comunidades de caçadores-coletores da África e da Austrália, as partes mais gordurosas eram preferidas para o consumo, para se conseguir mais calorias.”
Como resultado, Wierer diz que seria bom saber se o Homem do Gelo representa uma exceção ou se o ibex era uma parte comum da dieta dos moradores dos Alpes nessa época. Já foi determinado, ela diz, que o veado-vermelho era um alimento básico entre os europeus da Idade do Cobre nessa região.
É impressionante o que podemos aprender a partir de só um indivíduo. Porém, como Wierer sugere, isso pode nos conduzir ao caminho errado. Ötzi carrega muita informação consigo, mas o desafio daqui para a frente será distinguir seus hábitos e tendências particulares daqueles de sua comunidade. O simples fato de que ele tenha sido assassinado a sangue frio complica ainda mais as coisas. O quão forasteiro era esse humano da Idade do Cobre, especificamente?
Imagem do topo: South Tyrol Archaeology Museum\Eurac\M.Samadelli