O problema do argumento “quem não deve, não teme” para a vigilância em massa

Este argumento sempre foi problemático, e isso está ficando mais evidente: governos estão usando leis antiterrorismo para limitar a liberdade de expressão.

Desde as revelações de Edward Snowden sobre a NSA, há quem acredite que a vigilância em massa é algo necessário e até benéfico, afetando apenas as pessoas “ruins”, pois “quem não deve, não teme”. Este argumento sempre foi problemático, e as consequências disso estão ficando mais evidentes: governos estão usando leis antiterrorismo para limitar a liberdade de expressão.

>>> Não é certo culpar a criptografia pelos ataques terroristas em Paris
>>> A tecnologia que ajuda a monitorar e capturar terroristas

É o que nos lembra um vídeo recente do canal Kurzgesagt – In a Nutshell no YouTube. Você realmente confia que o governo sempre vai usar seus poderes de vigilância para o bem?

Leis antiterrorismo permitem que as autoridades investiguem e punam mais agressivamente crimes não relacionados com terrorismo. Se dermos ferramentas poderosas às autoridades, elas vão usá-las. É por isso que controle democrático é tão importante. Mesmo que essas ferramentas e leis não te afetem hoje, elas podem te afetar amanhã.

Por exemplo, após os ataques de novembro de 2015 em Paris, a França expandiu suas já extensas leis antiterrorismo dando às autoridades mais poder para efetuar buscas em casas e colocar pessoas em prisão domiciliar. Em semanas, surgiram provas que esses poderes foram usados para fins indesejados, como acabar com protestos contra mudanças climáticas.

24 pessoas foram colocadas em prisão domiciliar na França dias antes da COP-21 (conferência do clima da ONU). O governo alegou que esses manifestantes “haviam sido violentos durante protestos no passado”; no entanto, o diretor francês do Greenpeace disse que eles eram pacifistas, nunca cometeram nenhum ato violento e nem tinham passagem pela polícia. É algo que lembra a divisão pré-crime do filme Minority Report – A Nova Lei.

O governo francês também proibiu manifestações contra a COP-21 após os atentados de Paris, para não “distrair a polícia no combate ao terrorismo”. (Grandes aglomerações como eventos esportivos continuaram permitidos, no entanto.) Um grupo de 200 pessoas protestou mesmo assim, e quase todos foram detidos.

Após os atentados de novembro, mesmo quem não “devia” tinha algo a temer. A Human Rights Watch reuniu diversos casos de pessoas acusadas de participar de movimentos radicais que ficaram sob prisão domiciliar – proibidos de sair à noite e obrigados a comparecer a delegacia três vezes por dia – e que, meses depois, foram inocentadas pelo sistema judiciário. Eles perderam amigos, emprego e a confiança no governo.

Isso não se limitou à França, como diz o Kurzgesagt:

Os governos da Espanha, Hungria e Polônia introduziram leis mais restritas para a liberdade de expressão e reunião. A liberdade de expressão para a imprensa na Turquia tem sido gravemente enfraquecida nos últimos anos com pessoas sentenciadas à prisão por criticarem o governo. Nada disso está nos ajudando a combater o terrorismo.

Na Turquia, o governo promulgou novas leis para ampliar a capacidade de vigilância da Organização Nacional de Inteligência (MİT) e o poder do Estado de bloquear sites – eles já barraram acesso ao Twitter, YouTube e até a artigos da Wikipédia. Por exemplo, em 2014, ligações telefônicas do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan foram vazadas no SoundCloud, e o site foi barrado em toda a Turquia.

E jornalistas, que não deveriam ter nada a temer – a liberdade de expressão e de imprensa estão na constituição turca – correm alto risco de serem demitidos se investigarem casos de corrupção e de segurança nacional.


Ative as legendas em português clicando na engrenagem > Legendas > Português (Brasil).

As leis antiterrorismo são a desculpa perfeita para o governo ampliar seus poderes e silenciar dissidentes, tudo com a aprovação do público. E o real impacto dessas leis no combate ao terrorismo é bem menor do que parece.

Após o 11 de Setembro, o governo americano criou o Programa de Monitoramento de Terroristas, inicialmente para interceptar comunicações ligadas à Al-Qaeda. O FBI interrogou oito mil estrangeiros de origem árabe e muçulmana nos EUA, e colocou mais de cinco mil em prisão preventiva. Nenhum terrorista foi identificado.

Em 2013, após as revelações de Snowden, Keith Alexander – então diretor da NSA – disse que a vigilância da agência impediu “cinquenta e quatro atividades relacionadas a terroristas”, treze envolvendo os EUA. No entanto, após questionamento do Senado americano, ele voltou atrás: na verdade, só houve um caso de plano terrorista interrompido graças à espionagem, envolvendo organizações na Somália.

Então o que fazer para combater o terrorismo? O vídeo tem algumas sugestões, como a vigilância de alvos específicos – em vez da população como um todo – e uma melhor cooperação internacional. Como notamos por aqui, autoridades do Israel, Turquia, Iraque e Jordânia alertaram a França sobre o perigo iminente de um ataque terrorista em Paris, mas não obtiveram resposta – quem sabe o atentado pudesse ser prevenido.

Manter certas partes de sua vida privadas não significa que você esteja fazendo algo de errado. O direito à privacidade está na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira. Mesmo quem “não deve” tem algo a temer se desistirmos desse direito.

fique por dentro
das novidades giz Inscreva-se agora para receber em primeira mão todas as notícias sobre tecnologia, ciência e cultura, reviews e comparativos exclusivos de produtos, além de descontos imperdíveis em ofertas exclusivas