Dá para morrer de tanto comer?
Será possível comer tanto, mas tanto, até morrer pelo excesso? Sabemos que a alimentação é um problema sério nos Estados Unidos e no Brasil – nos últimos 10 anos, número de brasileiros obesos aumentou em 60%, segundo o Ministério da Saúde.
No entanto, é algo gradual: ninguém morreu ao comer três Big Macs, mas muita gente pode ter morrido por comer três Big Macs duas vezes por semana durante trinta anos (algumas pessoas, milagrosamente, conseguiram evitar esse destino).
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Mas e aquelas pessoas que exageram de vez em quando? As pessoas que, durante o Natal se esbanjam, ou depois de receberem uma notícia ruim acabam descontando na comida, o que pode acontecer? Não é preciso ser um viciado para ter uma overdose de qualquer droga; será que isso vale para a comida, também?
No Giz Pergunta desta semana, levamos essa questão para diversos profissionais da medicina, que deram respostas tranquilizantes e perturbadoras ao mesmo tempo – pense em estômagos explodindo, sistema digestivo infeccionado, entre outras coisas. Já é possível adiantar que morrer de tanto comer é uma tarefa bem difícil e que exige bastante esforço. Provavelmente isso não vai acontecer com você, mas não significa que seja algo impossível.
John O. Clarke, médico
Diretor do Programa Esofágico e Professor Clínico Associado de Hepatologia & Gastroenterologia da Escola de Medicina da Universidade de Stanford
É muito raro comer até a morte, mas não é teoricamente impossível.
Aquilo que todos pensam é sobre uma explosão do estômago, mas acho que isso é extremamente raro – o estômago é mais musculoso do que qualquer outro segmento do intestino, e é construído para se expandir. Ele, tipicamente, tenta se acomodar para lidar com refeições generosas, e se você estende demais, é comum causar vômito. Então, embora existam alguns relatos de casos de estômagos que explodiram, comer demais a ponto de existir pressões gástricas maiores é algo extremamente raro, porque ele consegue se expandir com muita velocidade.
Uma pessoa comum expande seu estômago em cerca de um litro durante qualquer refeição, mas não é incomum expandir mais. Por exemplo, uma pessoa que come 15 ou 16 cachorros quentes, geralmente vai ter uma expansão do estômago muito acentuada, e de certa forma paradoxal terão um esvaziamento gástrico mais lento. Não é claro o porquê disso acontecer. Pensa-se que talvez o esvaziamento gástrico mais lento tira a fome até certo ponto, para que se possa continuar comendo. Nestas situações, apesar da quantidade exagerada de comida que é consumida, quase nunca se sabe se alguém vai ter uma ruptura gástrica desse jeito.
O cenário mais comum é vomitar após comer exageradamente. O caso principal aqui para mortes é quando acontece a síndrome de Boerhaave, que é quando, de tanto vomitar e forçar o esôfago, ele sofre uma ruptura. Posso dizer que, durante toda a minha carreira, não vi ninguém ter uma ruptura gástrica, mas já vi alguns casos de Boerhaave.
Outra possibilidade que não seria necessariamente uma ruptura é uma condição que é chamada de síndrome de Mallory-Weiss ou síndrome da laceração gastroesofágica, quando se tem um rompimento na junção gastroesofágica. Isso pode ser associado com muito sangramento, embora na maioria das vezes não seja a um ritmo suficientemente rápido para que as pessoas sofram uma hemorragia e morram imediatamente. Mas digamos que a pessoa estivesse comendo demais e em algum lugar muito afastado de um pronto socorro, seria possível morrer dessa causa.
Na teoria, se você comer demais alguma coisa que tenha altos níveis de metal ou de um mineral dos quais seja possível sofrer uma overdose, há a possibilidade de surgirem alguns problemas. Posso dizer que nunca vi isso na prática, mas conversando com um amigo, soube que ele viu uma pessoa comer muita lagosta – tipo, quatro quilos de lagosta – e a pessoa acabou tento uma séria intoxicação por iodo, a ponto de precisar passar algum tempo do hospital. Mas é preciso comer uma quantidade muito grande de algo que seja pesado em mercúrio ou iodo ou algum mineral que costumamos ingerir em pequenas quantidades para que isso aconteça.
Barbara Jung, médica
Professora e chefe da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia da Universidade de Illinois em Chicago
No longo prazo, obviamente, sim: você pode comer até morrer. Acho que o aumento da obesidade da população dos EUA é um sinal claro disso. A maioria das mortes que acontecem nos EUA estão diretamente ligadas a obesidade, seja de complicações da obesidade em si ou de complicações associadas – doenças cardiovasculares, câncer, etc.
Se as pessoas estão preocupadas sobre isso durante as festas de fim de ano, é porque, na maioria das vezes, nosso corpo quer sobreviver, então ele irá nos dizer quando já comemos o suficiente e quando não conseguiremos comer mais. Eu diria que pouquíssimas pessoas continuariam, porque é muito difícil.
Uma maneira [de morrer por tanto comer] é, digamos, pela baixa temperatura da comida que você consumir, causando o desenvolvimento de uma hipotermia, uma vez que você digerir grandes quantidades de alguma coisa que estava muito quente ou muito fria. Outra forma seria comer algo que excede a capacidade do seu estômago. A comida precisa se assentar no seu estômago, e então precisa se mover pelos intestinos, e se o estômago estiver cheio, a única saída é pro cima. E as complicações causadas pelo vômito podem incluir asfixia (comida presa no sistema respiratório) ou sangramento, porque o tubo de alimentação no esôfago pode romper, e se ele realmente romper seriamente, haverá uma infecção na área ao redor do esôfago, que pode causar a morte. Mas essas consequências são bem raras, geralmente não são alcançadas, porque o nosso corpo se regula e não quer ser alimentado de forma exagerada.
Merlin Butler
Diretor da Divisão de Pesquisa, Clínico Genético e Professor de Psiquiatria na área de Ciências Comportamentais e Pediátricas no Centro Médico da Universidade de Kansas
[Comer a ponto de morrer] é certamente um fenômeno que vemos em uma condição chamada síndrome de Prader-Willi, que é a causa conhecida mais comum para obesidade mórbida em humanos. É uma doença rara – provavelmente 400 pessoas nascem com a condição todos os anos nos Estados Unidos, talvez 400 mil no mundo inteiro.
Pessoas como a síndrome de Prader-Willi possuem dois estágios clínicos principais. O primeiro estágio é falha durante o desenvolvimento: nascem muito flexíveis, com diminuição da atividade fetal. Eles são muito hipotônicos (situação em que o tônus muscular é abaixo do normal), o que leva a uma alimentação diferente.
Esse estágio dura muito meses, por um ano ou até mais, e então eles começam a desenvolver apetite. Esse momento pode ser muito extremo – o que é chamado de hiperfasia. Os indivíduos se tornam obesos mórbidos muito rapidamente. Toda a comida que veem é consumida, até que durmam ou o estômago se rompa. O rompimento do estômago é a causa comum da morte de pessoas com síndrome de Prader-Willi. Essa é a característica crucial.
Geralmente, o que acontece é que essas pessoas são colocadas em uma dieta restrita em um ambiente controlado, assim eles não possuem acesso livre à comida e seus estômagos se tornam bem pequenos. O que pode acontecer é uma situação na qual se deparam com a possibilidade de comer demais, porém seus estômagos parecem uma ameixa seca: com a alimentação exagerada seus estômagos explodem.
Eles sabem que podem estar comendo demais, porque a ingestão de comida até então era restrita. Aí acontece esse apetite voraz, consomem muita coisa e não conseguem ter a sensação de que estão satisfeitos. O cérebro diz “estou com fome, estou com fome” e não existe nenhum retorno que diga “hey, estou cheio, não dá pra comer mais”. A pessoa começa a comer com mais velocidade, porque sabem que podem ser pegas se não consumirem tudo imediatamente, e o reflexo faríngeo é muito baixo, então podem acabar engasgando. Pacientes com Prader-Willi também não conseguem vomitar. É uma situação paradoxal, uma tempestade. As histórias são inacreditáveis: crianças com Prader-Willi podem se jogar da janela se ouvirem o som do carro do churros.
E esse comportamento alimentar é ilimitado; [crianças com Prader-Willi] comem coisas que nós não consideraríamos comida – coisas que não consideraríamos itens comestíveis. Pode ser muito fatal.
Ilustração: Angelica Alzona/Gizmodo