Por trás de toda a propaganda sobre as carnes cultivadas em laboratório
Algumas pessoas têm grandes planos para o seu futuro. Elas querem que você – pessoa que adora comer hambúrgueres e frangos empanados – comprem os hambúrgueres e nuggets feitos a partir de células tronco. Um dia, carnívoros e veganos talvez cheguem a dividir um lanche. Este hambúrguer será delicioso, amigável ao meio ambiente e indistinguível em relação a uma carne tradicional. E eles asseguram que a carne será carne real, não apenas criados a partir de animais abatidos.
Esse futuro está na mente de um grupo de fundadores de startups no Vale do Silício e de pelo menos uma organização sem fins lucrativos. Alguns deles estão certos de que essa iniciativa ajudará nos impactos ambientes causados pela agropecuária americana, enquanto se protege o bem-estar de animais de fazenda. Mas essas promessas de comidas do futuro são hipotéticas, e muitas das afirmações são baseadas em um otimismo futurístico que está alinhada com a cultura de startups do Vale do Silício. Carne de cultura ainda está sendo pesquisada e desenvolvida e ainda é preciso superar grandes obstáculos antes de chegar ao mercado. Um produto pronto para o consumidor não existe ainda e seu progresso é fortemente cercado por pedidos de propriedade intelectual e sensacionalismo da mídia. Hoje, carne de cultura é muita propagando e nada de produto.
“Muito do que acontece no mundo da carne de cultura é feito para o fim das relações públicas”, conta ao Gizmodo Ben Wurgaft, pesquisador pós-douturado baseado no MIT que está escrevendo um livro sobre carne cultivada. Wurgaft acha difícil de acreditar em muitas das previsões sobre o futuro das carnes de cultura, incluindo a promessa de um produto para consumidores aprovado pela FDA (órgão equivalente a Anvisa) dentro de um ano.
A verdade é que apenas alguns protótipos bem-sucedidos foram mostrados ao público, incluindo uma proteína baseada em peixe-dourado, financiado pela NASA, no início dos anos 2000, e uma carne criada a partir de células de sapo em 2003 em uma exibição de arte. Mais exemplos surgiram recentemente: Mark Post revelou um hambúrguer cultivado com custo de US$ 330 mil em 2013, a startup Memphis Meats produziu almôndegas cultivadas e carne de ave nos últimos dois anos e a Hampton Creek planeja revelar seus produtos para um jantar até o final do ano. (A Memphis Meats se recusou a ser entrevistada para esta matéria, e todas as citações atribuídas a eles são de matérias anteriores).
O fato de muitas pessoas verem essa indústria de carne cultivada como uma carne sem crueldade, grupos de defesa dos direitos dos animais se tornaram mais vocais em relação a carne de cultura em um passado recente. A organização People for the Ethical Treatment of Animals ofereceram um prêmio de um milhão de dólares para qualquer pessoa que conseguir “produzir quantidades comercialmente viável de carne de frango in vitro (cultivada em laboratório)” em 2008. O prazo final para o concurso acabou em 2014. Em 2016 a organização sem fins lucrativos chamada Good Food Institute (GFI) surgiu a partir de um desmembramento da organização de direitos animais Mercy for Animals. A missão da GFI é promover o que eles chamam de “carne limpa”, ou “carne que é produzida por meio de agricultura celular”, em vez de abatimento animal, conta Bruce Friedrich, diretor executivo da organização. Hoje, muitas startups entraram no espaço da agricultura celular, muitas das quais seus fundadores se proclamam veganos ou promovem a superioridade ética presumida de seu produto. (O site da Memphis Meat deixa explícito que seu produto não é vegetariano ou vegano, embora tenha sido promovido pela GFI e funcionários veganos da empresa afirmarem que comeriam o produto).
“Temos um sistema de comida que não está funcionando, as pessoas comem coisas que degradam seus corpos, um bilhão de pessoas vão para a cama com fome, todas as noites”, diz Josh Tetrick, CEO da controversa empresa Hampton Creek, ao Gizmodo. Ele propôs que todas essas crises seriam resolvidas “com plantas” mas uma vez que as “pessoas amam carne”, carne cultivada pode ajudar. O problema é real: o consumo de carne continua a crescer, e pode crescer em “4% por pessoa pelos próximos dez anos”, de acordo com um relatório feito pela Ensia. A pecuária representa aproximadamente 15% das emissões de gás do efeito estufa produzidos por humanos, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
Mas primeiro, as startups precisam realmente lançar um produto para os consumidores, o que significa superar desafios críticos de produção e distribuição, antes mesmo de pensar em vender o produto como uma alternativa razoável e acessível em relação a carne comum.
“O ponto importante é que ninguém conseguiu fazer isso em escala ainda. O que temos hoje é baseado na extrapolação dos processos de escala de laboratório que não são apenas insustentáveis, mas também não são uma representação precisa de como o mercado funcionaria”, disse Eitan Fischer, diretor de Agricultura Celular na Hampton Creek, ao Gizmodo.
Por enquanto, sabemos que a carne é feita pela cultivação de células derivadas de animais no laboratório e que a colheita dessa carne é feita depois de um mês ou mais. Parte da subida na escala inclui desenvolver bioreatores industriais para cultivar a carne – produtores de carne cultivada esperam que no futuro o processo se pareça bastante com a produção de cerveja, onde as células crescem em grandes tanques. (Bioreatores de até 20 mil litros existem para outros propósitos, mas precisariam ser projetados especificamente para cultivar células de boi, frango e porco). Empresas falam pouco a respeito de seus progressos nesses bioreatores. A Hampton Creek contou ao Gizmodo que eles possuem um bioreator e explicou como essa subida de escala pode funcionar, mas não deu detalhes sobre o tamanho.
E ainda assim, startups de cultivo de carne amam falar sobre as emissões de gases do efeito estufa produzida pelo abatimento. “Com plantas provendo os nutrientes para o crescimento das células animais, acreditamos que conseguimos produzir carne e peixes com eficiência maior do que dez vezes em relação ao maior abatedouro em volume do mundo (um espaço de mais de 9.000 quilômetros quadrados em Tar Heel, cidade localizada no estado norte-americano de Carolina do Norte). Tudo isso sem confinar ou abater um único animal e com apenas uma fração da emissão de gases e do uso de água”, escreveu o CEO da Hampton Creek, Josh Tetrick, em uma publicação no Linkedin em junho passado.
Mas apesar do que você pode ter lido ou ouvido, a evidência sobre a carne cultivada ser melhor para o meio ambiente é inconclusiva. “Sobre os estudos de meio ambiente, o trabalho feito até agora é muito preliminar”, disse Fischer da Hampton Creek. Um estudo de 2011 estimou que o produto pode gerar menos emissões de gases do efeito estufa, mas usar praticamente a mesma quantidade de energia que a indústria suína europeia. Um estudo de 2015 encontrou potenciais benefícios ambientais na China, mas outra estimativa de 2015 descobriu que o método utilizaria a mesma quantidade de energia utilizada para as carnes de animais. O resultado é incerteza.
Parece que a ideia de que carne cultivada será melhor para o meio ambiente do que a carne sacrificada não exige apenas novas maneiras de produção de comida, requere que o mundo ao redor dessa indústria também mude, para sustentá-la – para que os produtos sejam feitos e enviados predominantemente a partir de energia renovável, por exemplo.
Quando a Memphis Meats discute os benefícios ambientais em seu site, dado os dados inconclusivos, essas afirmações parecem se basear em otimismo. “Quando pessoas contam histórias a respeito de carne cultivada, uma das coisas que eles fazem é rapidamente preencher lacunas nas páginas que falam sobre carne”, disse Wurgaft. Ele pensa que algumas pessoas interessadas no tema tratam a carne cultivada como um objeto no qual eles podem aparelhar outras projeções hipotéticas a respeito do mundo do futuro.
Como a carne cultivada ainda é uma grande promessa – carne sem assassinato – ela também é uma incerteza. O obstáculo mais falado na produção de carne sem abate é como alimentar as células. A indústria agropecuária trata os bois e vacas como pequenas fábricas: plantas consomem energia solar, bois comem plantas, bois transformar a energia solar em energia consumível aos humanos. Assim como os bois, as células cultivadas em uma cultura precisam ser alimentadas também. A opção mais prevalente é um soro feito a partir de sangue de fetos de bezerros chamado “soro fetal bovino” – claramente uma opção não-vegana e que não está livre do abatimento. Substitutos caros e proprietários existem como me apontou a cientista sênior do Good Food Institute, Liz Specht, mas todo o Santo Graal das empresas que produzem carne cultivada seria supostamente um soro acessível, sem produtos de origem animal.
“Validamos nossos primeiros processos e criamos a Memphis Meat sem soro fetal bovino”, conta Steve Myrick, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da Memphis Meats, ao Gizmodo há alguns meses. “Estamos em processo agora de aplicar tudo isso em nosso produto. Essa é uma das nossas conquistas que temos mais orgulho”. Do que o soro é realmente feito, nem mesmo eles ou a Hampton Creek contariam, citando direitos de propriedade intelectual. Mas Mike Selden, CEO da startup de peixes cultivados Finless Foods, me contou que foi “um caminho bem simples para identificar completamente os fatores necessários para o cultivo”, necessários para criar um substituto ao soro que fosse livre de sangue animal. “Uma vez que são identificados, podemos produzi-los em levedura transgênica, abaixando os custos de um produto misturado (não em um peixe 100%, mas uma parte da matéria sendo planta) em cerca de US$ 100 por libra”.
A maior parte dos fatos cruciais que envolvem o progresso da carne cultivada são obscurecidas por direitos de propriedade intelectual, apesar das afirmação de um “processo de produção transparente” da Memphis Meats, por exemplo. A natureza de ser um negócio exige detalhes em segredo – sobre o soro, os bioreatorese e de como todas essas células animais se juntam para formar algo – assim como as fórmulas secretas da Coca-Cola ou do frango do KFC. A Hampton Creek acaba de anunciar que eles estão “em conversas” para licenciar esses métodos proprietários para “algumas das maiores empresas de carnes do mundo”.
Apesar da nossa impossibilidade de acessar verdadeiramente a situação atual da carne cultivada, apenas a cobertura da impressa poderia te fazer pensar que o futuro será cheio de “carne feita totalmente em laboratório”. Eu sou tão culpado quanto o resto em colocar combustível nessa história.
“Há bastante cobertura da imprensa há praticamente sete anos, mesmo numa época em que não havia muitas coisas acontecendo”, conta Mark Post, professor de Fisiologia Vascular na Maastricht University na Holanda, co-fundador da Mosa Meat e criador do primeiro hambúrguer cultivado. “Parece um pouco excessiva a cobertura. Ou é de um jeito ou de outro. Ou é negativo, por motivos que não são rastreáveis, mas não por uma evidência particular, são apenas sentimentos. Ou é muito positivo no que é mais relacionado a altas expectativas. A realidade é que não temos um produto ainda. Está levando algum tempo e ainda existem obstáculos a serem superados para chegar lá”.
Hoje, estimativas para o lançamento do primeiro produto para consumidores vão desde a afirmação da Hampton Creek para 2018, até a afirmação para 2021 na Memphis Meat. Muitos olheiros da indústria acham que essas datas são muito otimistas, embora possa depender do preço inicial. Mas a promoção exagerada na cobertura não é algo novo – em entrevistas ao Gizmodo, pelo menos três comentaristas diferentes citaram o gráfico de Alexis Madrigal na revista The Atlantic. Ele demonstra as datas previstas e diversas estimativas sobre quanto as carnes in vitro chegariam às prateleiras, todas passaram.
Olheiros da indústria não envolvidos com as startups estão céticos por diversas razões. Muitos deles, em entrevista ao Gizmodo, disseram que as ondas de especulação preveniram uma conversação produtiva sobre como essa comida que nunca foi consumida antes ganharia escala e seria regulada pela FDA, e como isso iria evoluir.
Alguns disseram que a mentalidade vegana parecia desconfortável. “Parece estranho que veganos estarem tentando vender um produto para não-veganos”, disse Erin Kim, diretor de comunicações da New Harvest, uma organização sem fins lucrativos que funciona a ciência aberta e projetos de carne cultivada, ao Gizmodo. “Penso que é muito sublime tentar vender um produto para um grupo do qual você não faz parte”.
Outros na indústria estão preocupados com o sigilo que vem junto com os direitos de propriedade intelectual e afirmam que isso poderia causar medo no público. “Estou assustado com as maneiras que as [comidas] geneticamente modificadas se mostraram para o público, que foi muito mais relacionado com propriedade intelectual e propriedade em si do que por meio da ciência e tecnologia”, disse Isha Datar, diretora executiva da New Harvest. “Achei que a carne cultivada poderia ser transformadora, mas não queria que o mesmo acontecesse da mesma forma [como aconteceu] com os transgênicos”.
Datar também achou surpreendente aplicar o pensamento comum das startups ao mundo tradicional das carnes. Tetrick, da Hampton Creek, disse ao Gizmodo que empresa entrou no espaço das carnes cultivadas porque ele queria reduzir o consumo de carne produzida industrialmente na América.
Essa é uma pequena indústria realizando grandes promessas sobre como o futuro da carne será. É claro, startups tendem a fazer promessas exageradas (e alcançar objetivos) para que elas continuem a ser financiadas. Mas neste caso, não sabemos se a solução que eles estão oferecendo será a melhor.
Embora esteja confiante com o prazo final de produtos para 2018 dada pela sua empresa, Tetrick, CEO da Hampton Creek, concorda com as preocupações. “A ideia de que uma ou mais empresa no Vale do Silício ou em Israel começará de repente resolver um problema nos próximos dois anos é insano”, disse. Ele não acha, inclusive, que a carne cultivada é a solução perfeita. “Estamos apenas meio que balanceando a imperfeição versus a urgência. Dado todos os desafios ao redor disso – técnico, cultural e regulatório – vale a pena a aposta”.
Ainda assim, artigos mais positivos do que deveriam e otimismo ético pode nos fazer sonhar com um mundo que ainda não existe, onde a carne é fabricada em um bioreator, em vez de um futuro onde nós perseguimos outras opções para solucionar os problemas da agropecuária industrial. É animador que uma versão do futuro pareça estar logo ali, mas as pessoas estão escrevendo sobre carne cultivada em laboratório desde pelo menos 2003, sem um produto finalizado para se mostrar. Ele não existe ainda, pelo menos de uma forma que você, um consumidor, possa comer.
“Acho que estamos em um um ‘mal território’ quando o tipo de imaginação oferecida por essa tecnologia também possa ser algo que nos limite. Não acho que a carne in vitro é ‘o’ futuro da carne”, conta Christine Agapakis, bióloga e diretora criativa da Gingko Bioworks, uma empresa de biologia sintética que produzi micróbios personalizados, ao Gizmodo. “Pode ser um futuro da carne, mas acho que a maneira como a comida e a tecnologia serão misturadas será algo muito mais complicado do que qualquer visão atual possa nos oferecer.”